O ano ainda é 2023. Outras empresas do setor vinícola se utilizam de mão de obra análoga à escravidão em sua cadeia produtiva na geração de seus produtos, prática também encontrada na produção de um dos maiores festivais de música do país. Mais recentemente, outra companhia de varejo, que já havia tido problemas relativos à racismo em um passado nada longínquo, recebe a denúncia de um novo episódio que impacta diretamente questões de direitos humanos, através de práticas de racismo em um de seus estabelecimentos comerciais.
Diante deste cenário, resta a pergunta: o cuidado com os direitos humanos seria um modismo ou uma direção irreversível para as empresas que querem se manter sustentáveis para além do presente ano?
Inicialmente, para que este assunto se tornasse relevante para as organizações, vale a pena retornarmos um pouco no tempo. Entre as décadas de 1930 e 1940, tivemos a Segunda Guerra Mundial. Naquele período sombrio da história, ficou constatado que não somente países realizaram atrocidades em relação aos direitos humanos, com apoio do aparato legal local, mas, também, empresas se utilizaram da mão de obra de pessoas presas em campos de concentração, demonstrando um inexistente preocupação com o tema por parte de algumas empresas.
Em termos de responsabilidade corporativa, entre a década de 1960 e 1970, Milton Friedman, um economista estado-unidense, preconizava que a responsabilidade social dos negócios deveria ser o aumento dos lucros para os acionistas. Em linhas gerais, defendia que a busca pelo lucro deveria ser o incentivo fundamental para a inovação e o progresso econômico. Logo, com a maximização dos lucros, teríamos benefícios para a própria sociedade, vez que as empresas gerariam mais empregos, e, consequentemente, riquezas de forma geral. Este período ficou conhecido pelo forte apoio ao Capitalismo de Shareholders (ou Capitalismo de Acionistas), que denotava esta forte tendência de busca primordial do lucro aos acionistas.
Caminhando um pouco mais no tempo, na década de 1990, os estudos de John Elkington sinalizavam para uma Responsabilidade Social Corporativa através do Triple Bottom Line (ou Tripé da Sustentabilidade), no qual apontava que as empresas deveriam ser avaliadas não apenas por seus resultados financeiros, mas também por seus impactos nas áreas sociais e ambientais. Este posicionamento, de certa maneira, foi acompanhado pelo mercado, considerando que diversos investidores também apontavam para um movimento de necessidade de uma governança corporativa para lidar especificamente com o conflito de agência, havido pelas divergências de interesses entre os acionistas e os gestores das companhias. Inclusive, nesta mesma época, seria elaborado o Combined Code da bolsa de valores de Londres, sendo considerado um modelo mundial em termos de código de boas práticas de governança corporativa. Desta forma, esta década seria caracterizada por uma maior disseminação da Responsabilidade Social Corporativa.
Rumando um pouco mais no tempo, na virada do milênio, ainda que com uma maior evidência da Governança Corporativa, o escândalo da companhia energética Enron, mediante uma fraude contábil alarmante que gerou a perda de milhares de empregos e falência de grandes corporações, traria novamente a responsabilidade das empresas como uma questão a ser discutida tanto no meio empresarial quanto acadêmico.
Sendo assim, na década de 2010, influenciada pelos ideais de Michael Porter, temos, então, uma maior incidência do Capitalismo de Stakeholder, onde, neste modelo econômico, as corporações deveriam também valorizar os interesses de toda as partes interessadas como funcionários, fornecedores, clientes, comunidade e o meio ambiente. Ou seja, se no Capitalismo de Shareholder as empresas são vistas como agentes econômicos que visam exclusivamente maximizar o lucro dos acionistas, o Capitalismo de Stakeholder vê as empresas como agentes sociais que têm a responsabilidade de buscar benefícios para todos os seus stakeholders ao planejar estratégias e tomar decisões.
Mais recentemente, em 2015, um novo elemento entra na expressão. Através da Agenda 2030, os países integrantes da ONU firmam um compromisso reconhecendo a necessidade de mudanças urgentes no sistema global de produção e consumo, bem como na sua governança e distribuição dos recursos necessários ao bem-estar humano. Neste contexto, surgem os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (“ODS”). Como o nome já diz, estes objetivos pretendem trazer uma nova perspectiva de sustentabilidade para os agentes econômicos, auxiliando em temas como erradicação da pobreza, educação de qualidade, água limpa etc. Pelo tamanho do escopo, natureza e ambição dos ODS, esta agenda não se restringe somente para o Estado, mas, também pelas empresas e entes não empresariais.
Adicionalmente, em 2019, um grupo de executivos das principais empresas norte-americanas, denominado Business Roudtable, divulgou uma declaração afirmando o compromisso de agregar valor para todos os stakeholders, incluindo clientes, trabalhadores, fornecedores e comunidades onde operam. Além disso, no ano de 2020, no Fórum Econômico Mundial de Davos, se reconheceram aspectos fundamentais no que tange à Responsabilidade Corporativa, como declarações que o propósito de uma companhia é gerar valor compartilhado e saudável, não servindo apenas a seus acionistas, mas todos os stakeholders, além de atender aspirações sociais e humanas.
Finalmente, se destaca progressivamente o aumento da preocupação com a agenda ESG (Environmental, Social, and Governance), que tem sido cada vez mais bradada, ainda que 2005 seja o ano em que esta expressão seria pela primeira vez utilizada.
O ano ainda é 2023. Se todas estas alterações na responsabilidade das corporações ao longo dos anos não fosse uma justificativa para considerar os direitos humanos como parte do planejamento das empresas, há também uma movimentação regulatória mundial que deve ser apontada. No início deste ano, a Lei Alemã de Diligência em Cadeias de Fornecimento (Gesetz über die unternehmerischen Sorgfaltspflichten zur Vermeidung von Menschenrechtsverletzungen in Lieferketten, também chamada de Lieferkettensorgfaltspflichtengesetz — LkSG) entrou em vigor na Alemanha. Esta lei dispõe que as empresas devem realizar due diligence para prevenir a ocorrência de violações de direitos humanos em toda sua cadeia de suprimentos, englobando todos os fornecedores de produtos e serviços, desde a extração de matéria-prima, até a entrega do produto acabado ou a prestação dos serviços aos seus clientes.
Este posicionamento adotado pelos legisladores alemães não é um fato isolado. Pode até parecer que a adesão das empresas às práticas socialmente responsáveis ou aos sistemas de integridade para proteção dos direitos humanos sejam opcionais, diante do caráter voluntário de algumas normas, que, no direito, são conhecidas como soft law. Entretanto, cada vez mais países e organizações internacionais exigem compromisso e responsabilidade das empresas transnacionais com as questões relacionadas ao respeito aos direitos humanos, tanto nas relações diretas como, também, em referências à sua cadeia produtiva.
A título de exemplo, além da Alemanha, temos alguns movimentos importantes na América do Norte, como a entrada em vigor da publicação da Regulamentação de Trabalho Forçado no México. No Canadá também há o projeto de Lei ou Bill S-211 acerca da Transparência na Cadeia de Suprimentos. Com relação à Europa nota-se o Ato de Escravidão Moderna de 2015, e, também, a Noruega com a Lei de Compras Públicas Socialmente Responsáveis. Por fim, a própria União Europeia está discutindo a Diretiva sobre Corporate Sustainabilty Due Diligence que está relacionada à responsabilidade das empresas e pretende avaliar e gerencias impactos sociais de suas atividades comerciais em toda a cadeia de suprimentos.
Em termos de Brasil, como aspectos legislativos mais recentes, podemos citar a própria Lei 14.457/22, que instituiu o Programa Emprega + Mulheres, objetivando apresentar uma série de medidas preventivas e de combate ao assédio nas empresas. Ademais, já encontra-se no site do governo brasileiro a Cartilha Referente aos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU, que carrega relevantes tópicos para serem observados pelas organizações no tocante aos direitos humanos.
Diante desta exposição, fato é que existem diversos cenários que devem ser observados nesta pauta relevante dos Direitos Humanos. Entretanto, diante desta análise preliminar do quadro geral vigente, ao que parece é que muito em breve o que era tido como modismo por alguns, associar Direitos Humanos e Empresas deixará de ser uma opção, uma vez que, gradativamente, as corporações terão que se preocupar com práticas socialmente responsáveis, bem como os sistemas de integridade com foco na valorização dos direitos humanos, seja por dever regulatório, por uma imposição das Matrizes estrangeiras, ou, até mesmo, por obrigação contratual de um cliente.
Logo, esta tendência regulatória ou advinda de uma exigência de mercado, parece estar, progressivamente, mais presente no cotidiano corporativo, já que consumidores tem buscado adquirir produtos e serviços de empresas comprometidas com o respeito ao meio ambiente e aos direitos humanos. Isto é, independentemente do tamanho da empresa, setor de atuação ou localidade, as companhias devem considerar este “novo” cenário, intrinsicamente relacionado aos Direitos Humanos, e atuar de forma a mitigar riscos, agindo de forma efetiva na geração de perspectivas positivos à sociedade, além de buscar não cometerem os mesmos erros do passado.
O ano é 2023. Talvez ainda não seja tão tarde falarmos sobre Direitos Humanos e Empresas.